quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O que fazer quando é melhor ser surdo?



Era noite e eu estava cansada, ou seja, podia ser qualquer dia da semana – este é meu modus operandi atual. Mas eu tinha uma grande vantagem ao meu lado, estava no ponto de ônibus perfeito. Naquele ponto passavam umas cinco linhas capazes de me deixarem perto de casa.
E eis que vem o 434. Que bom, pensei, ele faz um caminho mais rápido que os outros. Fiz sinal e entrei. Entrei para viver uma experiência única. Descobri, neste dia, que o tempo, e não só o amor, pode ser “infinito enquanto dure”.
No Rio, a gente entra pela frente do ônibus, e dá logo de cara com aquele ser humano ao qual você entrega sua vida enquanto permanece dentro daquela caixa gigante com rodinhas que chamamos de ônibus. E de cara me surpreendo, o motorista era: a motorista. Era uma mulher com um cabelo tipo Elba Ramalho, muito loira, de batom e badulaques pendurados. Por cima da camisa do uniforme ela vestia um colete preto e, nas mãos, usava luvas, daquelas de bicicleta. Percebi tudo isso ao entrar no ônibus e olhar para ela durante cinco segundos, ou seja, se ela sequer abrisse a boca já seria presença marcante; mas ela não fez isso. Ela me comprimentou de modo efusivo e eu estranhei.
Passei pela roleta e sentei. A história começa. É claro que eu não estava de muito bom humor neste dia, mas poxa Deus, precisava me testar?! Meu calvário começou quando ela, a motorista, começou a cantar, e alto. O repertório você pode imaginar, não sei nem dizer qual era porque não conheço as músicas, mas eram ruins, e com ela cantando pareciam piores. Ela cantava alto, e comecei a maldizer aquele maldito ladrão que roubou meu radinho. Ah, meu radinho!
Mas ela não parou por aí. Ela falava, sempre alto, o tempo todo. Ela falava com o trocador, com os passageiros que entravam, com as pessoas na rua, com ela mesmo, era um falatório sem fim.
É uma pessoa muito feliz, pensei de novo. Mas que merda, como alguém pode ser feliz dirigindo um ônibus? Rapidamente lembrei de minha amiga Cacau e sua declarada aversão a pessoas muito felizes. Comecei a sentir saudade dos tradicionais motoristas de ônibus. Aquelas criaturas infelizes, que quando você entra e dá bom dia fazem aquela cara de vômito – isto quando eles olham para a sua cara. Onde estão estas nobres criaturas? Meus pensamentos foram interrompidos quando ao fazer uma curva, não muito fechada, ela gritou UHULL!
UHULL? Como assim UHULL? Eu posso contar nos dedos dos pés as coisas da vida que são capazes de me arrancar um UHULL! E nem que eu fosse uma centopéia, dirigir um ônibus seria uma delas! Eu te proíbo de ser feliz desse jeito, mulher! Mas nada é tão ruim que não possa ficar pior.
Ela então começou a cantar um hit internacional. Era a música Jump!, do Van Halen. Obviamente eu não identifiquei a música pela letra – ela estava cantando numa língua que os jupterianos falam, eu reconheci pelo ritmo do refrão.
O diabo é o que é por suas artimanhas...e lá estava ela cantando Jump!, e isso durou um bom tempo. Comecei a acreditar que Jump! era uma boa idéia, aquilo foi virando um mantra, Jump! Resolvi, então, abrir a janela, Jump!, respirei fundo e... Jump!.
Lá estava eu de novo num ponto de ônibus. É claro que eu não pulei do ônibus pela janela! Eu pulei da cadeira, puxei a sineta e desci. Numa fração de segundo entre um Jump! e outro, concluí que era melhor pegar outro ônibus do que ser surda.


PS: Escrevi isso em 2008 e postei no blog de uma amiga (ócio promíscuo), como agora eu resolvi ter um só pra mim, coloquei aqui também.

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